Nasceu uma flor
A minha alma é um terreno seco e duro onde nada se dá. É uma cara cheia de rugas, áspera dos anos, sulcada na sua aridez por veios estreitos que separam torrões de dores e desgraças. Nessa alma seca e dura nada entra, dela nada sai.
Habituada a uma vida miserável, sigo indiferente pela vida, sem saber outro jeito e sem o procurar.
Porém, dos surpreendentes meandros das teias que se cruzam e descruzam no decorrer dos dias iguais, surgiu inexplicavelmente uma mão pequenina que, insistentemente, me puxava pela saia comprida. Sem nada dizer. Muda de palavras, eram os olhos que imploravam, suplicavam.
Na minha indiferença, soltei-me e segui caminho. Ela acompanhou-me; eu adivinhava a sua presença atrás de mim, em silêncio. Comecei num jogo de por vezes andar mais depressa, outras vezes mais devagar e outras ainda parava. Ela fazia de minha sombra.
Sem que desse muito por isso, começou a penetrar a crosta dura e seca da minha alma. O meu pensamento centrava-se nela, naquela pequena criaturinha silenciosa de olhos suplicantes. Interrogações teimavam em surgir sobre a sua origem, a sua vida, a sua solitude. Porém, logo a minha alma se fechava, decidida a não deixar entrar coisa nenhuma, certa de que seria ainda mais uma dor.
Cansada de tanto andar, sentei-me à sombra, num banco de um jardim. Ela fitava-me, parada, um pouco afastada. Pensei que iria embora, agora que nada acontecia. Recostei-me, estiquei as pernas e fechei os olhos.
Quase adormecida, senti umas mãos pequeninas a afagar-me a cabeça, com muita delicadeza e ternura. Eram movimentos tão suaves e carinhosos, alisando os meus cabelos finos e desalinhados, que me abandonei a esse desconhecido sentir. Surpreendentemente, desses meus olhos fechados, vindas de um qualquer lugar estranho, começaram a rolar lágrimas inusitadas molhando a cara rugosa e árida. Seria o meu corpo ou a minha alma que assim falava? Teriam afinal as minhas células uma qualquer recordação de tal carinho? Ou será que tal memória habitava os recantos mais ignorados da minha alma?
Foi um momento mágico. Ela sentiu isso e veio aninhar-se a meu lado. Passei o braço pelos pequenos ombros e puxei-a mais para mim. Adivinhei que sorria. Ali ficámos num abraço singelo de fim de solidão.
Será que é a isto que chamam felicidade? Nos meus lábios nasceu um tímido esgar de sorriso. Fechei de novo os olhos. Na minha mente surgiu, com naturalidade, a palavra “Obrigada”.
Marcel Proust:
" Devemos agradecer às pessoas que nos fazem felizes.
São elas os jardineiros que fazem florescer as nossas almas."