Chamaste
Estava eu à porta quando me chamaste. Fiz de conta que não ouvi, até me virei para o outro lado. Que coisa! Sempre a chamar, a chamar... Preciso de paz, de estar comigo, de tranquilidade! Não quero que estejas sempre a incomodar-me. Claro que gosto que me chames, mas sempre? Sempre não, não quero.
E sabes porque não quero? É que, para além de ser uma chatice para mim – isto é realmente um egoísmo da minha parte, egoísmo aliás a que tenho todo o direito – é uma mentira. Porquê? Pensa bem. Qual a razão desse chamar, chamar? Não és tu um adulto, uma pessoa capaz, inteligente, admirado pelos teus colegas? Então porque queres fazer-me crer que precisas desesperadamente de mim em todas as situações? Deixa-me dizer-te que essa forma de adulação não funciona. Cansa-me.
Chamei-te. Vi perfeitamente o teu suspiro e o virar da cara. Queres ignorar-me. Isso dói-me. Queria-te mais perto de mim, menos arisca, mais amorosa, mas tu pareces não ligar. Por vezes pergunto-me quando anunciarás que te vais embora. Não sei o que fazer perante essa frieza. Então, chamo-te novamente. Pode ser algo estúpido, visto que não tem o resultado que pretendo, mas que queres? Não sei fazer de outra maneira...
Estava eu à porta quando me chamaste. O meu coração alvoroçou, a minha face enrubesceu, fiquei desajeitada sem saber o que fazer. Queria correr para ti, mas por outro lado não queria que soubesses o quanto fiquei vulnerável. Deitei-te um olhar rápido e vi-te sorrir. Sorri para dentro e continuei o meu caminho. Ao contrário do que sentia, não fui capaz de te responder.
Chamei-te. Vi perfeitamente que estremeceste, querendo esconder o que sentiste. Isso deixou-me cheio de entusiasmo. Percebi a tua timidez, o teu receio. Soube que ainda não era o momento, que era preciso esperar, continuar a namorar-te de longe... Ah sim, mas havia um “ainda” que me deixou eufórico. Agora “ainda” era assim, mas mais tarde quem sabe o que poderia acontecer...
Estava eu à porta quando me chamaste. Que quererias tu agora? Sempre tinha embirrado com aquela vizinha. Não a suportava porque ela toda se derretia, dengosa, a dizer piadas sem graça, a fazer-se simpática e melga. “Diz lá o que queres desta vez?” Oh, mas oh porque é que eu não a mandava passear? Porque é que eu tinha de ser sempre bem educadinho, comportado? Por vezes não me suportava também a mim mesmo.
Pode ser assim o chamar. Um pedido de encontro, de companhia, um apelo da alma, um desejo de partilha, de calor. Por vezes acerta e faz faísca; outras vezes não acerta e faz outro tipo de faísca.