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an-dando

Quando me escrevo, descrevo. Quando descrevo, estou. Quando estou, dou.

an-dando

Quando me escrevo, descrevo. Quando descrevo, estou. Quando estou, dou.

Talvez amanhã

09.01.25

Se o amanhã se desnudasse perante mim que vivo perdido num caminho precário, numa ilusória realidade, acreditando que aquilo que se alberga nos recantos da memória é pedra e cal 

Se esse amanhã se revelasse agora, neste preciso momento em que a minha alma se dilacera, rejeitando e sofrendo com o lado mais escuro e sujo da vida, essa parte que nem as lágrimas conseguem lavar

Se tal amanhã mostrasse a surpresa resultante dos acontecimentos ocultos e espantosos que, na sequência do tempo, aguardam a sua vez, 

Se antecipasse a magia do ainda por experimentar, as sombras das maravilhas que se escondem atrás do véu dos dias por chegar

Sim, se tal fosse possível, mesmo que só um pouco,

Então deitar-me-ia nesse abraço do amanhã, com a certeza de que o hoje, na verdade, não tardará a passar

Palavras

19.11.24

As palavras fervilham, rodopiam, sem nexo nem história

Simplesmente surgem, passam e desaparecem

Um filme de palavras na tela do pensamento.

De onde surgem? Para onde vão?

Porquê? Para quê?

Algo mais concreto devia acontecer, algo com mais sentido.

Ou seria o caos o sentido de tudo aquilo?

Ou seria o caos o que precisava de sair, de ver a luz do dia,

De sair do seu esconderijo e de se mostrar na sua real pujança.

O caos em que vivia o seu pensamento.

Sem fio condutor, sem significado, simplesmente algo que ninguém compreendia, nem compreenderia, 

Algo que não era para compreender, algo que simplmesmente era.

Perguntavam-lhe o que queria dizer, o que pensava.

Nada. 

Era simplesmnete uma amálgama de palavras que fervilhavam, rodopiavam, sem nexo nem história, simplesmente surgindo, passando e desaparecendo.

Um filme de palavras na tela do pensamento.

Riu descontrolando-se pela evidência que finalmente dava sentido ao que se passava.

Foi apenas um momento.

Depois… o filme continuou.

Out of Africa

19.11.24

O que seria se não mexêssemos…

Se não alterássemos o curso dos rios, as árvores nas florestas, os animais na savana.

O que seria se não quiséssemos moldar todos ao nosso estilo…

Se não transportássemos para longe os nossos costumes, a nossa dita sabedoria…

O que seria se entendêssemos que cada um tem direito ao seu estado, 

Às suas manias, ao seu tempo.

O que seria se conseguíssemos durante umas dez gerações largar,

Deixar acontecer…

O que seria se nos deitássemos na noite de breu, 

Se acordássemos com os tons laranja e dourado,

Com o cheiro da terra quente,

Se pudéssemos apreciar o contraste da terra vermelha com o verde da vegetação,

Se pudéssemos olhar o largo horizonte, sem nada saber, sem nada esperar.

Simplesmente!

O que seria se pudéssemos aceitar o negro da pele, o falar que não entendemos,

O pé descalço, a música intrínseca, o sorriso fácil, os esquemas e a malandrice de quem aprendeu cedo uma outra arte de sobreviver… 

O que seria se quiséssemos aprender, se quiséssemos regressar ao nosso estado dito mais selvagem, mais genuíno, mais natural...

O que seria se perdêssemos o medo e a dominação…

O corredor

19.11.24

Formavam um casal, como dizer… no mínimo interessante. Interessante porque bonitos, tanto ele como ela, elegantes, descontraídos como se tudo esperassem e nada temessem. Ela de boina, sempre de boina clara e de saia; ele de chapéu, daqueles com uma aba um pouco revirada, e de sapatos brancos e pretos. Alturas havia em que ela se atrevia a mostrar-se-lhe em trajes transparentes e sugestivos, usando o chapéu dele e olhando-o com um ar desafiador de quem sabe o que provoca. Nessas alturas, ele delirava… não resistia!

 

Naquele dia, era um dia de sol. A rua poeirenta estava calma. Entraram e ela percorreu o longo corredor escuro, sem pressa, com uma passada de quem sabia onde ia e o que ia fazer. O Ford V8 ficara à porta, pronto para arrancar quando fosse preciso. O tanque de gasolina estava cheio. O motor desligado. Ele, lá dentro, espiando a rua, todos os que passavam, atento ao menor movimento.

 

Os minutos escorregavam no mostrador do seu relógio e ela, nada, não havia meio de sair. Inquieto, primeiro hesitou, depois acabou por se decidir. Sabia que era arriscado, não era nada do que tinham planeado. Mas que fazer? Não podia ficar ali, especado, sem saber o que se passava. Mil hipóteses desfilavam rapidamente pelo seu pensamento. Entrou novamente e dirigiu-se ao longo corredor escuro, apressado. Ninguém o deteve. Ouviam-se os empregados a falar, risadas, máquinas de escrever, dedos tamborilando em secretárias, um telefone tocou. O ambiente era leve. Antes assim, pensou, tudo normal!

 

Sabia que o cofre estava lá ao fundo; a esta hora estaria aberto, pronto para despejar o seu magnífico conteúdo nos sacos que ela levava na carteira e que ele também tinha agarrado ao sair do carro. Sentir o habitual amigo à cintura, escondido pelo casaco, deu-lhe confiança. Tudo iria correr bem!

 

Nisto, viu-a sair do compartimento do fundo, apressada e decidida. Agarrava a carteira como se lá dentro estivesse a sua salvação e a do mundo. Agarrou-o pelo braço e fez-lhe dar meia volta, ficando os dois virados para a saída, a meio do longo corredor escuro. Surpresa das surpresas! No outro extremo do corredor, tinham aparecido dois corpulentos e ferozes que, calmamente, os esperavam. O casal interessante não tinha como fugir. Era necessário uma qualquer estratégia que lhes permitisse ultrapassar aquela pavorosa barreira humana. Eram só dois, caramba; dois contra dois, nada mais fácil! Entreolharam-se, pensativos. De repente sorriram, sabendo que já estava delineada a tal estratégia. Calmamente, dirigiram-se aos corpulentos e ferozes e com um ar infantil: “Viemos só ver o corredor!”.

 

Um texto sem tema

26.06.24

Um texto sem tema é um texto em que são as palavras que mandam e não o que está na cabeça do autor. As palavras vão saindo, perfilam-se na folha, umas a seguir às outras, alinhadas, sem haver qualquer significado especial, qualquer ideia condutora, qualquer mensagem a transmitir.

 

Um texto sem tema não serve para comunicar, não tem conteúdo.

 

Para que serve um texto sem tema? Dir-se-ia simplesmente que serve para deitar fora. Não é verdade que as palavras foram inventadas para que possamos comunicar uns com os outros? Ora, um texto que não tem esse objectivo certamente que é lixo.

 

Ah... mas o incrível é que pode haver muito mais para além do que faz sentido e do que transmitimos uns aos outros por palavras. Há o ritmo, o som, a cadência, a entoação, a possibilidade de articular de várias formas, de fazer exercícios de sonoridade ou simplesmente de brincar com as palavras, ver quais ficam bem ao lado umas das outras. 

 

No reino dos sons, onde a palavra nasce, há toda uma dança, uma onda que flutua para além da nossa imaginação, invisível, mas presente. No reino dos sons a palavra é audível. No reino da escrita, a palavra materializa-se, lança para dentro de nós significados, evoca memórias, sabemos até qual o som que lhe diz respeito.

 

Então a palavra escrita é arte, é pintura, é desenho, é símbolo, tem outra vida.

 

Quando um texto não tem tema, só pelo facto de ser texto, mesmo que seja desconexo, difícil ou rebelde, é afinal um tema que se revela e que, por mais que queiramos que não faça sentido, há sempre o sentido intrínseco do som que nos entra pelos olhos. E por mais curioso ou inimaginável, esse som inexistente derivado da visão de uns gatafunhos tem em si o poder de accionar outras ondas dentro de nós capazes de gerar químicos que nos podem tornar saudáveis ou doentes.

 

Tal é, por exemplo, o poder de um texto sem tema.

Será que toda a arte é perfeitamente inútil?

26.06.24

Caminho no traço de carvão sobre o papel sem ideia de onde vou, onde me leva a minha mão ou o próprio traço, sem nada saber sobre as curvas que aparecem impressas sobre o papel. É o próprio traço que, de repente ou aos poucos, revela algo que tem correspondência dentro de mim, na cabeça ou no coração.

 

Caminho no texto que vai surgindo, que palavra a palavra se vai, ele próprio, compondo, sem que eu perceba de onde vem essa corrente, às vezes torrente, outras soluço.

 

Caminho na terra que aperto nas mãos, ora com força ora ao de leve. A primeira ideia é apenas isso, a primeira ideia, gatilho para agarrar e começar a sentir. Tornear sem saber onde vai dar.

 

Caminho na melodia que interrompe o silêncio e que se afirma por si própria. As notas seguem a emoção, a paixão, a desilusão ou simplesmente a inação.

 

Dos meandros insondáveis da minha mente, ou do meu coração, saem correntes que se laçam e interlaçam, se enlaçam e desenlaçam, matéria imaterial, fluida e energética, presença subtil inexplicável, carregada de uma força expulsadora, ignição de algo tangível e finalmente parido.

 

O belo que inexiste faz parte do processo; também o tom, o equilíbrio ou o desequilíbrio, a harmonia ou o contraste, a suavidade ou a agressão, a provocação e tantos outros elementos que são agarrados por hábeis, no privilégio do momento.

 

Se tudo isto é inútil? Para mim, não. É algo que nos liga, comunica, explica, interage, implica, despoleta, extasia, ... Acaso também nos separa, distancia, enraivece, desilude, ...

 

Quiçá fala-me do autor; decerto fala-me de mim.

Nasceu uma flor

14.05.24

A minha alma é um terreno seco e duro onde nada se dá. É uma cara cheia de rugas, áspera dos anos, sulcada na sua aridez por veios estreitos que separam torrões de dores e desgraças. Nessa alma seca e dura nada entra, dela nada sai.

Habituada a uma vida miserável, sigo indiferente pela vida, sem saber outro jeito e sem o procurar. 

Porém, dos surpreendentes meandros das teias que se cruzam e descruzam no decorrer dos dias iguais, surgiu inexplicavelmente uma mão pequenina que, insistentemente, me puxava pela saia comprida. Sem nada dizer. Muda de palavras, eram os olhos que imploravam, suplicavam. 

Na minha indiferença, soltei-me e segui caminho. Ela acompanhou-me; eu adivinhava a sua presença atrás de mim, em silêncio. Comecei num jogo de por vezes andar mais depressa, outras vezes mais devagar e outras ainda parava. Ela fazia de minha sombra. 

Sem que desse muito por isso, começou a penetrar a crosta dura e seca da minha alma. O meu pensamento centrava-se nela, naquela pequena criaturinha silenciosa de olhos suplicantes. Interrogações teimavam em surgir sobre a sua origem, a sua vida, a sua solitude. Porém, logo a minha alma se fechava, decidida a não deixar entrar coisa nenhuma, certa de que seria ainda mais uma dor.

Cansada de tanto andar, sentei-me à sombra, num banco de um jardim. Ela fitava-me, parada, um pouco afastada. Pensei que iria embora, agora que nada acontecia. Recostei-me, estiquei as pernas e fechei os olhos. 

Quase adormecida, senti umas mãos pequeninas a afagar-me a cabeça, com muita delicadeza e ternura. Eram movimentos tão suaves e carinhosos, alisando os meus cabelos finos e desalinhados, que me abandonei a esse desconhecido sentir. Surpreendentemente, desses meus olhos fechados, vindas de um qualquer lugar estranho, começaram a rolar lágrimas inusitadas molhando a cara rugosa e árida. Seria o meu corpo ou a minha alma que assim falava?  Teriam afinal as minhas células uma qualquer recordação de tal carinho? Ou será que tal memória habitava os recantos mais ignorados da minha alma?

Foi um momento mágico. Ela sentiu isso e veio aninhar-se a meu lado. Passei o braço pelos pequenos ombros e puxei-a mais para mim. Adivinhei que sorria. Ali ficámos num abraço singelo de fim de solidão. 

Será que é a isto que chamam felicidade? Nos meus lábios nasceu um tímido esgar de sorriso. Fechei de novo os olhos. Na minha mente surgiu, com naturalidade, a palavra “Obrigada”.

 

Marcel Proust:

" Devemos agradecer às pessoas que nos fazem felizes.

São elas os jardineiros que fazem florescer as nossas almas."

Inquietação

24.04.24

Esse ponto do ser onde a incerteza se alia ao temor. Sem pedir para chegar nem para ficar, vem sem ser convidada, sem aviso prévio. Aproxima-se devagar, por vezes sem que se dê por ela. Silenciosa, vai entrando e aconchegando-se em recantos insuspeitados. É no coração que gosta mais de se instalar. Aos poucos vai destronando outros que lá estão. Arreda a confiança, elimina o sossego, expulsa a tranquilidade. Vai acinzentando os dias e os jeitos habituais. Vai roubando sorrisos, diminuindo alegrias. Vive de expectativas negativas e dramas por concretizar.

Não costuma vir de dentro para fora, mas de fora para dentro. É dentro que pode ser sentida e é de dentro que pode ser banida.

Contraria-se com gratidão e com esperança. Juntam-se pedacinhos de brilho do sol, do cantar de um passarinho, de um azul que se desvenda por entre nuvens... Vai-se soltando com o efeito de uma partilha sincera, por vezes até banhada, e acaba por desistir quando se vê cercada por um forte abraço e um ombro onde ela não tem qualquer lugar.

Inquieta

24.04.24

É o vazio que me inquieta.

O vazio e o silêncio. O nada. O vácuo. O não ser.

O infinito de possibilidades.

 

A invisibilidade de uma molécula,

De uma bactéria, de um vírus.

Tudo o que é para além de mim e também em mim.

O que não abarco, não entendo, nem controlo.

 

É o todo que me inquieta.

O grande, o imenso, o inalcançável, o imensurável.

O negro, o fundo, o escuro, o indecifrável.

Nada outra vez.

O suspiro, o grito, o ribombar e o estrondo.

 

É a prisão que me inquieta.

A imprevisibilidade e a falta.

O vislumbre do míssil, da luta, da guerra, do sangue, do drama e do terror.

Da calamidade.

Saber da fome, da miséria, da lama e da podridão.

A limitação.

A ilusão do poder e da falta dele.

 

Inquieta-me

A manifestação implacável

Do lado mais negro da espécie a que pertenço.

A propósito de olhares - II

09.04.24

Não sou de primeiros olhares. Fustigada pela vida, dorida por desenganos, agora desacredito. Talvez tenha deixado de ser ingénua.... Realmente não sei se as experiências que vivi me ensinam ou me enganam. Tomo a floresta por uma única árvore, como se tudo fosse igual.